Red Científica Iberoamericana

O QUE CONSIDERAR NA UTILIZAÇÃO DE TABELAS DE REFERÊNCIA DE CRESCIMENTO FETAL

Ricardo Filipe Sousa Santos
Serviço de Obstetrícia e Ginecologia, Centro Hospitalar do Alto Ave, Guimarães, Portugal

Guimarães, Portugal (SIIC)

O uso das tabelas de referência de crescimento fetal, apesar de praticamente universal em obstetrícia e neonatalogia, O uso das tabelas de referência do crescimento fetal é controverso. As razões para este fato são várias.

É difícil determinar com exatidão o peso fetal, já que as estimativas ecográficas de peso fetal (EEPF) têm habitualmente erros que ultrapassam facilmente os 10% do peso estimado, podendo este valor superar os 20%. Como regra geral, podemos reter que 95% das estimativas que obtemos nos fetos corresponderão a um valor real dentro de [estimativa+-15%]. Em cerca de 68% das estimativas, este erro é inferior a 7-8%. Numa estimativa de peso fetal de 2500g, o valor real situar-se-á, com 95% de certeza, entre 2125g e 2875g. O erro absoluto é, habitualmente, menor, mas apenas cerca de metade das estimativas se encontrarão a menos de 5% absolutos do valor real. Neste aspeto, uma grande fonte de erros aleatórios são as fórmulas de cálculo, que usam medidas biométricas para estimar o peso fetal, algo que incorre, naturalmente, em erros de grandeza considerável. Os artigos que as apresentam (e são algumas dezenas) descrevem estes erros1. Outras fontes de erro são as provenientes das diferenças entre populações, variação da composição fetal, erros do operador (sistemáticos e aleatórios), etc. As várias fórmulas existentes não são substancialmente diferentes, no que diz respeito à validade e precisão da sua estimativa.

Depois de determinada a estimativa de peso fetal, é necessário enquadrar o resultado. A interpretação com base numa tabela ou gráfico é prática conhecida por todos, muitas vezes calculada de forma automática pelo software do ecógrafo ou do relatório. Desde que Lubchenco 2 apresentou a primeira referência de crescimento, e deu origem ao paradigma mais comummente utilizado, em que comparamos um peso com a distribuição esperada para uma determinada população, por idade gestacional, dezenas de tabelas se seguiram, uma necessidade evidenciada pelas limitações da sua utilização entre populações distintas e por atualização metodológica da sua concepção. Dado não existir uma referência que seja mais “adequada” do que as outras, quando não existe uma orientação clara, os clínicos acabam por usar, individualmente, aquela que consideram melhor ou que estão mais habituados a usar.

A incapacidade de atingir o potencial de crescimento, como conceito a estudar, e no contexto das referências de crescimento fetal, leva a que duas vertentes se tenham desenvolvido: As referências populacionais são baseadas na análise dos registos do nascimento, com base populacional. Podem conter, por exemplo, todos os nascimentos de um país durante 3 anos, pelo que inclui todo o tipo de grávidas, com e sem patologia da própria gravidez; Por outro lado, o conceito de “standard” de crescimento seleciona um subconjunto da população, de baixo risco e com resultado da gravidez conhecido e favorável (por exemplo, sem patologias e sem internamentos por complicações do recém nascido). Apesar de se poderem apontar vantagens e desvantagens a cada um dos métodos para produzir os valores de referência, é certo que a interpretação de um determinado valor de estimativa de peso é diferente caso se use um ou outro tipo de referência.

Para além do conceito utilizado em termos de população incluída na produção das tabelas, temos ainda que considerar a colheita dos valores em si. Fundamentalmente, dois métodos são utlizados: Os dados do nascimento, que consideram os pesos dos RN distribuídos por idade gestacional e os dados de ecografia, que usam as determinações de EEPF em várias alturas da gravidez. Os dados do nascimento, apesar de precisos, correspondem, em idades gestacionais precoces, a gravidezes de evolução não “normal”, sendo o nascimento, por variadas razões, antes do termo, pelo que se discute a sua utilidade para definir a “normalidade”. No entanto, as EEPF possuem outros problemas, como séries habitualmente muito pequenas e englobando os erros inerentes à técnica.

Depois de ultrapassados os problemas de escolha do tipo de tabela/gráfico a utilizar, será necessário escolher uma referência que se adeqúe à população a estudar, o que implica pelo menos verificar, numa série de casos ou num período de tempo, se os nascimentos, nas condições de criação das tabelas, se enquadram em termos de distribuição nas mesmas, ou seja, se a nossa população tem pesos por idade gestacional sobreponíveis. Outra solução, especialmente útil quando a população tem várias diferenças, é criar uma referência local (para a região ou país), o que, apesar de metodologicamente mais difícil, pode fazer adequar ainda mais os valores.

O uso de valores de referência adaptados, ou personalizados, pretende propor para cada caso um conjunto de valores de referência esperados. Este conceito é largamente usado quando utilizamos curvas diferentes para fetos de diferentes etnias ou sexo (o sexo é tido em conta na maioria da tabelas publicadas), mas é alargado por alguns investigadores para incluir outras variáveis, maternas e fetais, de forma a obter uma maior relevância clínica dos desvios eventualmente observados em relação aos esperados, sem incurso em alguns dos erros e limitações já referidos nas tabelas3.

Com todos os dados disponíveis, selecionada a tabela a usar, resta-nos identificar a posição do feto em relação à população da referência usada. Habitualmente isto é feito calculando o percentil em que se encontra, para a idade gestacional. O percentil tem uma interpretação lógica: Se um feto está no percentil 10, significa que, na população onde foi criada a referência, cerca de 10% dos fetos/RN com aquela idade gestacional tinham um peso inferior enquanto cerca de 90% possuíam peso superior ao do feto em questão. A importância desta interpretação prende-se com o fato de se esperarem cerca de 10% dos fetos na população a estudar abaixo do percentil 10, o que, a não acontecer, significa que os valores de referência utilizados não serão adequados.

Por fim, o contexto clínico é muito importante. O uso das EEPF seriadas, mesmo com intervalos de medição longos (cerca de 2 semanas), incorre em erros importantes e servirá apenas como um dado em todo o contexto da gravidez em questão, nomeadamente o potencial de crescimento fetal, a saúde fetal e da placenta (estudos ecográficos, incluindo Doppler) e a velocidade de crescimento fetal4. Apesar de ser bem conhecida a relação entre o crescimento nos extremos das tabelas de referência e a morbi-mortalidade perinatal, esta relação é muitas vezes de difícil interpretação e pode levar a casos sérios de iatrogenia por atuação intempestiva numa gravidez de evolução normal.

É, assim, importante conhecer as limitações dos valores de referência de crescimento fetal para os poder utilizar de forma correta, num determinado contexto clínico. Resolvendo ou, pelo menos, considerando cada um dos problemas apresentados, será mais fácil tomar decisões corretas perante uma suspeita de restrição de crescimento fetal ou macrossomia.

É importante, por todas as razões apresentadas, considerar a uniformização da utilização deste tipo de valores de referência, pelo menos dentro da mesma instituição, para que menos confusão seja gerada nos pais por informações díspares entre especialistas e, sobretudo, entre as especialidades de Obstetrícia e Neonatalogia, que devem trabalhar juntas na escolha e validação das referências a utilizar.

Apesar das suas limitações, quando bem utilizadas, as referências de crescimento fetal podem instrumentos muito úteis na prática clínica.



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