Red Científica Iberoamericana

A TRANSVERSALIDADE DAS BUROCRACIAS NOS (EN LOS) HOSPITAIS PÚBLICOS BRASILEIROS

Helena Heidtmann Vaghetti
DocenteCoordenadora do Programa de Pós-Graduação em Enfer, Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, Brasil

Rio Grande, Brasil (SIIC)

A convivência da burocracia mecanicista e profissional nos hospitais públicos brasileiros, simultaneamente, pode aumentar as distâncias entre os sujeitos e acirrar (instigar) conflitos e disputas profissionais, pela (por la) presença das hierarquias na primeira e pela diferenciação profissional produzida na segunda.

Os hospitais públicos brasileiros possuem uma identidade que os caracteriza duplamente: o “público”, e a sua forma peculiar de assistência, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). A configuração do público, marcada historicamente pelo imobilismo na prestação de serviços, aliada à construção paulatina do SUS, que produz ainda algumas defasagens entre as demandas de saúde e a oferta de serviços, geram dificuldades de gerenciamento dos espaços hospitalares. Isto é agravado pela sujeição aos financiamentos, aos múltiplos controles externos exercidos pelo Estado e seus representantes, afora outros fatores envolvidos na conjuntura sociopolítica e econômica peculiar da administração pública da saúde no Brasil que afetam os hospitais, atualmente.
Internamente, os hospitais experimentam, secularmente, modelos de gestão tradicionais com estruturas hierárquicas ultraverticalizadas, que os constringem como burocracias conservadoras que estão muito aquém das estratégias inovadoras de condução das organizações que buscam a excelência em seus serviços.
Entretanto, a presença da burocracia faz-se necessária nos hospitais, pois o crescimento em tamanho e complexidade, o aumento de pessoal, a multiplicação de serviços e das especialidades médicas e novas tecnologias nestes espaços forçaram importantes modificações em suas estruturas hierárquicas, de poder e dos sistemas de comunicação1.
As organizações podem ser consideradas burocracias mecanicistas e profissionais, cada qual com características que ora se aproximam e ora se distanciam. A burocracia profissional está presente em organizações, hospitais e universidades, por exemplo, que produzem bens ou serviços estandardizados e apóiam-se, para funcionarem, nas competências e nos conhecimentos de seus trabalhadores, que são profissionais. Já na burocracia mecanicista, observa-se uma linha hierárquica claramente definida, onde a unidade de comando é cuidadosamente mantida e há uma distinção rígida entre os níveis operacionais e funcionais2.
Porém, nos hospitais podem ser encontrados aspectos da burocracia profissional e várias evidências da presença da burocracia mecanicista, o que pode se configurar em um movimento híbrido característico das organizações hospitalares, quando o caráter público parece conferir o aspecto burocrático, e o sentido de hospital/saúde/doença determina a dobra profissional
Nos hospitais públicos brasileiros, enquanto burocracias mecanicistas, verifica-se que as hierarquias mostram-se fortemente organizadas, talvez vinculadas à idéia mais controladora e mais clássica, ou ainda, segundo alguns autores3, calcada na inspiração militar tradicionalista e no poder racional-legal para o estabelecimento e a manutenção da autoridade a que o Brasil esteve sujeito durante muitos anos. Assim, neste sentido quando a posição hierárquica é determinada no organograma, reduzem-se as pessoas a cargos, “estabelecendo uma ordem disciplinar dos espaços/limites permitidos do transitar a liberdade”4:92.
Afora isto, o sistema universalista e meritocrático, instituído no serviço público brasileiro, há algumas décadas, não abandonou algumas formas particularistas de recrutamento, alocação e ascensão funcional, fomentando, em muitos hospitais, uma confusão generalizada entre a hierarquia institucionalizada e os papéis exercidos pelos sujeitos no interior dessas realidades, pois nem sempre aqueles mais capazes ocupam o topo hierárquico dessas organizações.
Sob qualquer prisma, nos hospitais, as hierarquias, assumem um papel discriminatório, mesmo que seja em relação à informação ou comunicação ascendente ou descendente da cadeia funcional. Em outras palavras, aqueles que estão em níveis superiores agem discriminadamente em relação àqueles em níveis inferiores e vice-versa, numa eterna disputa pelo poder e autoridade que a posição pode traduzir.
Superando este sentido, em certos casos, a autoridade limitada pela hierarquia nos hospitais públicos brasileiros significa um empecilho a decisões a que as pessoas podem tomar em seus níveis funcionais, o que ocasiona descontentamentos e acarreta um choque com as forças decisórias superiores, além de alimentar ações que favorecem a transgressão de normas e facilitam os autogovernos.
Na atualidade, em algumas organizações existe uma tendência dita pós-modernista de gerenciamento que, para recompensar o desequilíbrio provocado pelo poder acumulado no topo da hierarquia, procura dar voz ao silêncio, o que significa buscar maiores níveis de participação dos membros marginalizados da organização tais como mulheres, minorias raciais e étnicas e dos mais jovens e mais velhos empregados.
Esta forma de diminuir as distâncias hierárquicas vem ocorrendo nos hospitais, mas é utilizada também como uma ferramenta administrativa, pois reduz o poder de discordância entre os trabalhadores e a administração, uma vez que, sendo parte do processo de tomada de decisão organizacional, os trabalhadores perdem seus direitos para contrariar disposições. Este estado de (não) participação parece ser um artifício utilizado pela gestão de alguns hospitais, para manter reféns e cúmplices, ao mesmo tempo, certos trabalhadores que, talvez, inconscientemente, se considerem como agentes decisivos na administração gerencial e fomentem uma cultura de que são partícipes dos processos organizacionais.
Na burocracia profissional, diferentemente da burocracia mecanicista onde o poder é ditado pela natureza hierárquica, o poder está fundado na natureza profissional, isto é, o poder reside na especialização. Assim, nas burocracias profissionais e aí incluídos os hospitais, existem duas linhas hierárquicas paralelas, “uma para os profissionais, no sentido ascendente e que é de natureza democrática, e a outra para as funções de apoio logístico, no sentido descendente, e que tem a natureza de uma Burocracia Mecanicista”2:391.
Isto é constatado nos hospitais públicos brasileiros sob a forma de uma certa pendência burocrática entre a administração dos hospitais e os gerentes mais técnicos, profissionais específicos da área da saúde, manifesta na maneira como a administração regula os problemas do hospital e na forma como os técnicos vivenciam os problemas no seu dia-a-dia. Usualmente, estas diferenças de concepção se exprimem pelas diferentes visões dos diversos profissionais sobre os problemas hospitalares, cada qual voltada a uma ótica específica: a estritamente gerencial e a estritamente assistencial, que, não raro, culminam em atritos.
Para além desta questão, também são seguidamente referenciados e vivenciados os problemas decorrentes das hierarquias/subordinação/poder entre médicos e enfermeiros, assunto tão discutido no processo histórico de ambas as profissões, que provocam rupturas no processo de trabalho hospitalar.
Diante do exposto, pode-se considerar que a convivência da burocracia mecanicista e profissional nos hospitais públicos brasileiros, simultaneamente, pode aumentar as distâncias entre os sujeitos e acirrar conflitos e disputas profissionais, pela presença das hierarquias na primeira e pela diferenciação profissional produzida na segunda.
É urgente que os hospitais busquem formas de organização interna que, além sobrepujarem a cultura da inoperância do “público”, encontrem estratégias para desenvolver eficiente e eficazmente os princípios e diretrizes do SUS e ainda proporcionem arranjos estruturais que promovam a cooperação entre os diversos trabalhadores.
Todavia, resta o questionamento sobre a viabilidade ou a utopia desta proposta, uma vez que, para tal, deve-se, não somente vencer resistências específicas de cada cultura hospitalar, mas, também, debelar circunstâncias arraigadas ao modelo público de gestão da saúde e ao próprio serviço público brasileiro.

*Extraído da tese de VAGHETTI, Helena Heidtmann. As perspectivas de um retrato da cultura organizacional de hospitais públicos brasileiros: uma tradução, uma bricolagem [tese]. Florianópolis: Programa de Pós-graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.
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