FENÓMENO DROGA E PERIFERIA URBANA DESQUALIFICADA: CONTRIBUTOS A PARTIR DA ETNOGRAFIA
Luís Fernandes
PsicólogoProfessor associado, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, Universidade do Porto, Porto, Portugal
Porto, Portugal (SIIC)
As formas mais destrutivas de consumos problemáticos de drogas têm vindo a fixar-se (se establecieron), desde os anos 80 do século XX, nas zonas urbanas socialmente desqualificadas. A partir duma (de una) abordagem etnográfica, identificamos algumas razões para este facto, discutimos as consequências da estigmatização social destas zonas e actores e damos breve notícia da redução de riscos enquanto estratégia privilegiada para intervir (intervenir) no terreno.
O fenómeno droga só se constitui como problema social, em Portugal como noutros países da Europa ocidental, ao longo da década de 70 do século passado. Primeiro associado à juventude e ao consumo de cannabis, evoluiria a partir dos anos 80 para produtos mais adictivos (heroína, cocaína, base de coca), para consumos mais problemáticos (policonsumos, via injectada), para franjas socialmente desqualificadas e para zonas urbanas que rapidamente ganhariam a conotação de territórios do tráfico. Ao tema da “toxicomania juvenil” sucederia assim o da associação do fenómeno droga à periferia urbana degradada, ao tráfico, ao crescimento da criminalidade de rua e ao sentimento de insegurança. Nos anos 90 torna-se evidente a sua associação à epidemia de VIH e à propagação das hepatites B e C e da tuberculose, colocando a questão dos consumos de drogas ilegais, particularmente os realizados por via intravenosa, como um importante problema de saúde pública. Este problema sanitário teria também expressão no interior do sistema carcerário, dada a quantidade de reclusos que eram toxicodependentes e para os quais o sistema não estava preparado.
É neste contexto que irá salientar-se a figura do “bairro social degradado”, sucessivamente rebaptizado como “problemático”, “crítico”, “sensível” – para a generalidade da comunicação social simplesmente “bairros da droga” ou “hipermercados da droga”. Foi nestes contextos socio-territoriais da cidade do Porto que desenvolvemos o nosso trabalho, utilizando o método etnográfico para compreender dum modo próximo e vivido as realidades e os actores locais e estabelecer as características e a funcionalidade que o fenómeno droga aí desempenhava. Desenvolvemos então o conceito de território psicotrópico para dar conta dos espaços que serviam de base às actividades diárias da compra, venda e consumo de substâncias psicoactivas ilegais - territórios psicotrópicos como atractores de indivíduos com interesses nestas substâncias, funcionando instrumentalmente como facilitadores da “vida na droga” (cf. Fernandes, 1998; Fernandes, 2002; Fernandes e Pinto, 2004)
BAIRROS SOCIAIS, TERRITÓRIOS PSICOTRÓPICOS E VIOLÊNCIAS QUOTIDIANAS
Os bairros sociais são, de todas as áreas do tecido urbano, aqueles onde se fazem sentir mais profundamente os efeitos da crise dos fundamentos da sociedade industrial. Lugares de concentração de mão-de-obra necessária às unidades produtivas que marcaram o desenvolvimento industrial, os seus habitantes conhecem hoje uma crise sem precedentes das possibilidades de inserção laboral. O mundo do qual viviam e do qual ajudavam a reproduzir a lógica está hoje em desagregação, colocando-os numa situação que, mais do que definida pela marginalidade, é definida pela inutilidade: na expressão de Robert Castel (1998) são supranumerários, olhados como um peso pelo sistema social porque a sua força de trabalho já não encontra lugar.
É, pois, natural que num quadro de crise com esta dimensão as economias informais tenham adquirido um valor instrumental como estratégias de sobrevivência que são em parte responsáveis pela imagem negativa que os mass-media têm difundido, ao insistirem no relato sobre o “hipermercado das drogas” e a insegurança. Esta construção mediática tem erigido em figuras da ameaça e da agressão justamente aqueles que são as vítimas maiores da actual configuração da economia capitalista e do correlativo exercício dum poder que insiste na dualização entre os “integrados” e os “excluídos”. Esta dualização, se por um lado é uma resposta ao medo das “classes perigosas” através da sua segregação simbólica e espacial, (Caldeira, 1992), é por outro lado uma estratégia que visa assegurar um eficaz controle social sobre aqueles que constituem o segmento secundário do mercado de trabalho, caracterizado pelos baixos salários e qualificações e pela grande precariedade (empresas de trabalho temporário, subcontratação, trabalho a tempo parcial, auto-emprego etc.).
A instalação do comércio de rua das drogas ilegais, sobretudo da heroína, nestes lugares, se representou uma estratégia económica vantajosa no curto prazo, acabou por ter efeitos destrutivos sobre as comunidades locais. Colocadas sob suspeita, passam a ser olhadas no debate público como focos de socialização no crime e como parasitas do Estado Social. Os “bairros das drogas” serão progressivamente olhados como espaços a evitar, reforçando deste modo a sua descontinuidade com a envolvente urbana. Passarão então a ser alvo de grande atenção policial, zonas eleitas pelas instâncias da segurança pública para as suas demonstrações simbólicas de eficácia, tornando estas populações as grandes “clientes” do sistema carcerário (cf. Cunha, 2002). Este ritual securitário atingiu a sua máxima expressão quando o poder autárquico do Porto decidiu demolir u bairro que concentrava os maiores territórios psicotrópicos da cidade, invocando precisamente “o tráfico de droga” e considerando-o responsável por ter tornado o bairro “no cancro da cidade que urge extirpar” (linguagem de responsáveis autárquicos reproduzida na imprensa). O processo de demolição e realojamento da população do bairro viria a revelar métodos coercivos, resultando numa operação urbana marcada pela violência (cf. Fernandes e Ramos, 2010).
A esta violência estrutural exercida pela polícia e pelo poder político viriam juntar-se violências quotidianas disseminadas, em que toxicodependentes em situação de grande precariedade, muitas vezes sem-abrigo, eram vítimas de agressões por parte de moradores vizinhos das zonas de concentração drug, nomeadamente por grupos de adolescentes do bairro. Sublinhe-se que todas estas acções – da polícia, dos gestores do espaço urbano, da população - apenas agravam a situação social e sanitária dos toxicodependentes de rua, que se disseminam por espaços vizinhos reproduzindo novos territórios psicotrópicos e interrompendo alguns laços que já tinham sido construídos com técnicos a actuar no terreno.
REDUZIR RISCOS NOS TERRITÓRIOS PSICOTRÓPICOS
Estas franjas de consumidores problemáticos de drogas, com longas trajectórias de consumo que os colocam em situação de grande vulnerabilidade tanto social como sanitária, obrigavam a reequacionar políticas de intervenção. As autoridades e o sector medico-psicológico reconheciam finalmente a insuficiência das respostas terapêuticas tradicionais, ainda largamente baseadas numa leitura exclusivamente psicopatológica do consumidor de drogas e na intervenção em setting clínico. Era necessário implementar estratégias para fazer face à gravidade das epidemias de VIH e de hepatites, ao mau estado físico geral de muitos adictos, bem como a grande quantidade de consumidores problemáticos que não se dirigiam às estruturas de tratamento.
No início da década de 2000, é aprovada em Portugal legislação que despenaliza o consumo de todas as drogas e consagra a adopção de políticas de redução de riscos e minimização de danos. Tornam-se assim realidades institucionalizadas a troca de seringas, a substituição opiácea com metadona em contexto de rua (metadona de baixo limiar de exigência), os gabinetes de apoio a funcionar nas zonas de consumo. Este trabalho é realizado por equipas multidisciplinares (tipicamente psicólogo, assistente social, enfermeiro e, nalgumas equipas, um utilizador de drogas a fazer trabalho de pares). São elas que levam ao terreno esta filosofia interventiva, que tem como princípios a acessibilidade e o pragmatismo. Perante consumidores problemáticos com trajectórias marcadas pela perda sucessiva de laços e pela estigmatização, podemos dizer que é nestas equipas de rua que a comunidade (re)começa. A evidência de bons resultados foi já verificada em países que a iniciaram em finais dos anos 80 e ao longo de toda a década seguinte, como a Holanda, a Suíça ou a Espanha e é hoje reafirmada em muitos outros países onde tem vindo a ser implementada, em geografias tão distintas como a América Latina, a Ásia ou o norte de África.