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MANIFESTAÇÕES ANÔMALAS EM DOENÇA DE CHAGAS DE PROVÁVEL TRANSMISSÃO ORAL
(especial para SIIC © Derechos reservados)
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Autor:
Ana Yecê Neves Pinto
Columnista Experto de SIIC

Institución:
Instituto Evandro Chagas

Artículos publicados por Ana Yecê Neves Pinto 
Coautores
Vera Costa Valente* Sebastião Aldo Valente* 
Instituto Evandro Chagas, Ananindeua, Brasil*

Recepción del artículo: 1 de abril, 2008

Aprobación: 15 de julio, 2008

Primera edición: 7 de junio, 2021

Segunda edición, ampliada y corregida 7 de junio, 2021

Conclusión breve
Surto de Doença de Chagas aguda ocorrido no Pará demonstrando apresentação clínica anômala e letalidade de 16%. Respostas ao tratamento com benzonidazol 3 anos após a fase aguda, mostraram sorologias persistentemente positivas em 100% dos casos e indícios de persistência parasitária em 1 caso.

Resumen

No dia 9 de agosto de 2002 um casal de idosos procurou o Instituto Evandro Chagas para tentativa diagnóstica de suspeição de febre do dengue. Desde 13 de julho/2002 manifestaram quadro febril agudo, artralgias, mialgias intensas e edema de membros inferiores. Tiveram seu diagnóstico confirmado como doença de Chagas aguda devido a exame positivo para T. cruzi no sangue periférico. Seqüencialmente, foram diagnosticados mais 10 casos de ocorrência simultânea, todos relacionados familiarmente aos primeiros. Todos os doentes manifestaram febre e variavelmente apresentaram queixas gastrintestinais, especialmente dor abdominal. Três deles apresentaram icterícia. Comprometimento cardíaco foi verificado em dois (16.7%) dos doze doentes. Quadros graves ocorreram em quatro dos doentes mais idosos e entre estes, dois evoluíram fatalmente. Após 36 meses do tratamento específico, dez pessoas vêm evoluindo satisfatoriamente, têm exames parasitológicos negativos e níveis de anticorpos IgG persistentes em títulos baixos. PCR realizada após 4 anos da fase aguda e do tratamento mostraram-se negativos em 88.9% deles e positivo em um (11.1%). Este único paciente com PCR e sorologia positivos foi caracterizado como portador de infecção por T. cruzi I e submetido a novo tratamento com benzonidazol.

Palabras clave
doença de Chagas, transmissão oral, tripanosomíase, Amazônia

Clasificación en siicsalud
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Especialidades
Principal: Infectología
Relacionadas: BioquímicaEducación MédicaEpidemiologíaGeriatríaMedicina InternaPediatríaSalud Pública

Enviar correspondencia a:
Ana Yecê Neves Pinto, Instituto Evandro Chagas Ministério da Saúde Secretaria de Vigilância em Saúde, 67030070, Ananindeua, Brasil

Acute familiar Chagas disease in Igarapé Miri municipality, Pará State: anomalous clinical manifestations related to possible accidental oral transmission

Abstract
On August 9th, 2002, an elderly couple arrived to the Evandro Chagas Institute for diagnostic evaluation, with fever and suspicion of dengue infection. They had experienced acute fever, arthralgia, severe myalgia and lower limb edema since July 13th, 2002. Diagnose of acute Chagas disease was documented by a positive test for T. cruzi in peripheral blood. Ten more subjects who had been simultaneously infected were diagnosed in sequence. All of them belonged to the family group of the old couple. All the patients experienced fever, and some of them had gastrointestinal complaints, especially abdominal pain. Three of them had jaundice. Cardiac involvement was found in two subjects out of twelve (16.7%). The most severe cases were four of the older relatives, and two of them died. After 36 months of specific treatment, ten patients had a successful outcome, their parasitological tests were negative, and they had low titers of persistent IgG antibodies. PCR performed within 4 years of the acute phase and treatment showed negative results in 88.9% of the subjects and a positive result in one (11.1%). Only this patient with a positive PCR and positive serology was characterized as a carrier of T. cruzi infection and received a new treatment with benznidazole.

MANIFESTAÇÕES ANÔMALAS EM DOENÇA DE CHAGAS DE PROVÁVEL TRANSMISSÃO ORAL

(especial para SIIC © Derechos reservados)

Artículo completo
Introdução
Historicamente, os fenômenos ecoepidemiológicos ocorridos em áreas endêmicas de doença de Chagas no Brasil, permitem estimar que em áreas anteriormente livres da doença, como a Amazônia, o desflorestamento desordenado e o crescimento populacional periurbano, concorreriam variavelmente para o aumento da incidência de casos humanos. Paralelamente, a tentativa de implantação de um Sistema de Vigilância Epidemiológica e Entomológica em doença de Chagas na Amazônia em 1995, permitiu maior sensibilidade na detecção de casos. Assim, a partir de 1996, um aumento do número de casos autóctones da doença tem sido registrado anualmente nos estados do Pará e Amapá.
Na região, a doença tem sido descrita clinicamente em adultos, invariavelmente diagnosticados em fase aguda e frequentemente sob a forma de acometimento simultâneo, ou quase simultâneo, em grupos familiares ou vizinhos.1
Em área endêmica as descrições clínicas de fase aguda registram a febre como um sinal sempre presente, mesmo em indivíduos oligossintomáticos. Síndrome febril prolongado é relatada frequentemente na Argentina.2 Também fazem parte do quadro: dores articulares, dores musculares, hepatoesplenomegalia, hipertrofia ganglionar e edema subcutâneo. Fenômenos meningo-encefálicos e exantemáticos são raros nas casuísticas brasileiras do passado. Entretanto, especialmente em casuísticas da Argentina os fenômenos dermatológicos e o exantema do tipo roseólico são relativamente freqüentes.3,4
As manifestações cardíacas são de miocardite difusa, de intensidade não encontrada em miocardites de outras etiologias.5
Entre as manifestações digestivas da doença aguda, o comprometimento hepático é o que mais se sobressai e resume-se a lesões de caráter inflamatório com tendência a regressão rápida.6 Resguardadas as condições de subnutrição das crianças da casuística de Carlos Chagas descrita em 1911, a degeneração gordurosa hepática foi por ele descrita em 36.4% dos óbitos ocorridos, sendo uma delas maciça.7 Em outros órgãos, lesões do sistema nervoso autônomo periférico, responsáveis pela aperistalse do esôfago e cólons ocorreriam principalmente durante a fase aguda.8
As descrições clínicas da doença na Amazônia têm sido apenas recentemente registradas de forma sistemática. Os autores relatam a apresentação clínica de um surto familiar de doença de Chagas aguda ocorrida em julho de 2002, no município de Igarapé-Miri, nordeste do Pará, envolvendo 12 pessoas de duas famílias vizinhas, alertando para a ocorrência de casos graves especialmente em idosos com evolução fatal e comprometimento digestivo inusitado. Os autores também seguiram ao longo de 3 anos, as pessoas agudamente infectadas que sobreviveram, descrevendo as respostas individuais ao tratamento específico com benzonidazol.

Metodologia
A partir do registro de um casal doente, diagnosticado no IEC em 9 de agosto de 2002 e do relato deles sobre a existência de mais doentes com quadro febril simultâneo entre seus familiares e vizinhos, foi desencadeado trabalho de campo para investigação.
O município de estudo, Igarapé Miri, fica situado a 73 km da capital do Estado do Pará (Belém) e constitui área com características predominantemente rurais próprias de áreas de rios da Amazônia brasileira. A área de ocorrência dos casos constitui o núcleo urbano do município.
Os casos registrados pertenciam a duas famílias vizinhas. Foram realizadas entrevistas clínico-epidemiológicas com indivíduos considerados casos e com seus familiares e ainda em 101 vizinhos residentes a menos de 20 m de distância em linha reta da residência dos casos.
Foram considerados casos agudos de doença de Chagas aqueles indivíduos com síndrome febril prolongada e exame parasitológico positivo na pesquisa de T. cruzi. Também foram considerados casos agudos indivíduos com síndrome febril prolongado, com vínculo epidemiológico (relação espaço-temporal) a casos parasitologicamente confirmados e marcador de fase aguda positivo.
Todos foram submetidos à coleta de 10 ml de sangue, para realização de pesquisa de T. cruzi por técnicas parasitológicas: Quantitative Buffy Coat (QBC) e gota espessa e sorológica: hemaglutinação indireta (HI). Entre indivíduos diagnosticados como casos, além destas técnicas, também foram realizados Imunofluorescência indireta (IFI), para pesquisa de anticorpos IgG anti-T. cruzi quantitativo; xenodiagnóstico artificial e hemocultivo para isolamento parasitário (dados não mostrados).
Todos os casos confirmados foram tratados com benzonidazol e seguidos sequencialmente após início do tratamento com a seguinte periodicidade: 30 dias, 60 dias, 12 meses e 36 meses (3 anos). Nos períodos relativos ao seguimento após tratamento foram submetidos aos seguintes exames: sorologia por técnicas de IFI e HI; xenodiagnóstico indireto e hemocultivo para T.cruzi em meio Hoff’s.
Durante a fase aguda (na vigência do surto) nove pacientes foram submetidos a eletrocardiograma (ECG) de repouso e ecocardiograma bidimensional. Após a fase aguda (4 anos após o tratamento) todos refizeram a avaliação cardiológica com eletrocardiograma de repouso e ecocardiograma Doppler bidimensional.
Aos 36 meses após o tratamento foram submetidos a teste adicional de avaliação de cura (PCR). Para realização da técnica foi feita coleta de 10 ml de sangue, depositado diretamente em tubos contendo solução de guanidina HCl/0.2M EDTA e armazenado em geladeira a 7°C. Para o processamento das amostras os tubos foram parcialmente imersos em água e fervidos por 15 minutos. Uma alíquota de 100 μl foi usada para preparação do DNA. Para a etapa de extração, os procedimentos foram feitos em duplicata. Após desproteinização, empregando fenol-clorofórmio (1:1), água e clorofórmio saturado, foram acrescentados 10% de acetato de sódio e o dobro desse volume de etanol. A mistura foi deixada por 15 minutos em banho de gelo e o material foi então centrifugado a 12 000 rpm por 15 minutos. O sobrenadante foi desprezado e o tubo contendo o sedimento foi colocado em placa de aquecimento (Muti-block) regulada para 70ºC por um período de aproximadamente, 5 minutos, até que toda a parte líquida evaporasse. O “pellet” foi ressuspendido em 50 μl de água ultra-pura e o DNA armazenado em freezer a -20ºC. A amplificação do DNA extraído foi feita em volume de 7.5 μl. A PCR foi realizada com o volume total de 100 μl do Mix contendo 10 μl do tampão de reação (buffer II contendo no tubo 100 mM Tris HCl, pH 8.3, 500 mM KCl), MgCl2 (25 mM MgCl2) e 100 ng/μl de cada primer utilizado (121 e 122), 2 μl de dNTPs (10 mM) e 0.75 μl da enzima Taq Gold (AmpliTaq Gold- da marca Applied Biosystems) utilizando protocolo já descrito,9 com modificações realizadas pelo Laboratório de Doenças Parasitárias, Departamento de Medicina Tropical/FIOCRUZ e utilizando 7.5 μl do DNA extraído. As amostras foram processadas e amplificadas em duplicata. Como controles positivo e negativo foram feitas preparações de DNA originadas do sangue de pessoas confirmadamente chagásicos e não chagásicas, respectivamente.
Foram coletadas 101 amostras de sangue entre familiares diretos dos casos e vizinhos. Todos foram submetidos a entrevistas e coletas de sangue para realização de exames sorológicos utilizando a técnica de HI para triagem.
A busca simples por triatomíneos no domicílio foi feita em frestas, atrás de quadros, porão de ambas as casas e quintais. O peridomicílio foi investigado em trabalho posterior (dados não mostrados).

Relato dos casos
Em agosto de 2002 um casal de idosos procurou o Instituto Evandro Chagas (IEC) para tentativa de diagnóstico de suspeita de infecção por vírus dengue. Ambos apresentavam desde 13 de julho/2002 um quadro febril agudo prolongado de causa não esclarecida, além de artralgias, mialgias intensas e edema de membros inferiores. Referiram cerca de 5 casos concomitantes de febre em familiares e em uma residência vizinha. Devido à manifestação clínica de edema, foram encaminhados ao Laboratório de Doença de Chagas (Labchagas) no qual, ambos tiveram seu diagnóstico confirmado, tendo sido encontrado em um deles, formas de Trypanosoma cruzi no sangue periférico pelo método QBC. No segundo paciente o diagnóstico foi firmado pela característica clínica compatível, vínculo epidemiológico com o primeiro caso positivo e marcador de fase aguda (IgM) positivo.
Outros 10 casos foram diagnosticados entre filhos e netos que coabitavam com o casal e ainda, em uma casa vizinha da residência deles (Tabela 1). Os parasitas encontrados em exames parasitológicos tinham aspecto morfológico semelhante a T. cruzi. A caracterização parasitária não está demonstrada neste estudo.






Portanto, duas residências vizinhas registraram casos, sendo uma delas com 9 residentes entre os quais 8 (88.9%) adoeceram. Nesta ocorreu também um dos óbitos, imediatamente (24 horas) após início do tratamento específico. Na segunda residência moravam 8 pessoas, entre as quais 4 (50%) adoeceram. Nesta também ocorreu um óbito.
Todos os doentes manifestaram como sinal principal a febre. O início da doença variou entre os dias 6 e 21 de julho de 2002 com maior ênfase entre os dias 12 e 15, nos quais sete pessoas manifestaram sintomas. A diferença em dias, entre a primeira pessoa a manifestar sintomas e o segundo, foi de 6 dias. A diferença entre o primeiro doente a manifestar sintomas e o último foi de 16 dias (Figura 1).






Manifestações gastrointestinais foram observadas em freqüências variáveis, incluindo dor abdominal, vômitos ou diarréia, além de artralgias e/ou mialgias intensas. Icterícia foi evidente em três pessoas, sendo que em uma delas foi acompanhada de discreta alteração de aminotransferases. O exame físico não mostrou sinais de porta de entrada em nenhum doente. O edema de membros inferiores constituiu um sinal importante em metade dos pacientes (Figuras 2 e 3).











Comprometimento cardíaco foi verificado em três (25%) pacientes, sendo um deles oligossintomático com manifestação radiológica de aumento de área cardíaca relacionada a discreto derrame pericárdico. O segundo manifestou dispnéia aos pequenos esforços, dispnéia paroxística noturna e o terceiro apresentou lipotímia e dispnéia aos mínimos esforços, revelando derrame pericárdico.
Entre 6 eletrocardiogramas realizados na vigência da fase aguda, 2 demonstravam alterações transitórias, sendo 1 com extrasístoles supraventriculares e ventriculares associadas à bradicardia e o outro com hemibloqueio anterior esquerdo.
Ecocardiogramas realizados durante a fase aguda em 6 pacientes, mostraram-se alterados em 3 (50%), sendo 2 com derrame pericárdico mínimo e 1 com alteração do relaxamento de ventrículo esquerdo em paciente idosa.
Nódulos subcutâneos foram achados de exame físico em quatro pacientes (33, 2%), com exceção de um indivíduo portador de hipotireoidismo congênito que manifestou lesões nodulares de pele semelhantes a eritema nodoso em membros inferiores.
Quadros graves ocorreram em quatro dos doentes mais idosos e entre estes, dois óbitos. O primeiro óbito ocorreu 48 horas após início do tratamento com benzonidazol. Clinicamente houve manifestação de hemorragia digestiva baixa. O paciente foi submetido à laparotomia exploradora de urgência, na qual foi encontrada úlcera gástrica sangrante. O exame histopatológico da lesão gástrica vista em hematoxilina-eosina não demonstrou parasitos. O óbito ocorreu por coagulação intravascular disseminada.
O segundo óbito ocorreu após quadro abdominal agudo do tipo cirúrgico. O paciente manifestou inicialmente febre por 4 a 5 dias, acompanhada de vômito, dor abdominal intensa, dispnéia aos mínimos esforços e edema de membros inferiores. Passados 30 dias após início de doença, o diagnóstico de doença de Chagas aguda foi finalizado devido vínculo epidemiológico aos casos parasitologicamente positivos e sorologia positiva, tendo iniciado tratamento específico. Contudo, devido piora progressiva da dor abdominal e distensão abdominal, foi suspenso o tratamento. Persistindo a dor abdominal, foi submetido à avaliação cirúrgica que sugeriu presença de abdome agudo metabólico. Evoluiu com piora da dor abdominal, quadro séptico progressivo apesar da antibioticoterapia instalada e óbito em 14 de agosto de 2002. O terceiro e quarto doentes graves demonstraram recuperação lenta, mas com progressiva melhora logo após início de tratamento específico (Tabela 2).






A investigação de soroprevalência de anticorpos IgG anti-T. cruzi na área estudada não identificou casos entre indivíduos assintomáticos.

Avaliação após 36 meses de seguimento de indivíduos tratados
Após 36 meses passados desde a doença aguda, todos os tratados evoluíram sem intercorrências clínicas, durante as avaliações anuais. Em 100% deles os exames parasitológicos indiretos realizados seriadamente resultaram negativos. Todos persistiram com sorologia positiva (IgG) com títulos variáveis entre 40 e 160.
Entre indivíduos submetidos ao ECG durante a fase aguda aqueles que apresentavam exames alterados (um com extrasístoles ventriculares e supraventriculares e outro com hemibloqueio anterior esquerdo) não mantiveram estas alterações na avaliação subseqüente. Entre os 3 ecocardiogramas alterados durante a fase aguda, dois estavam normais no exame subseqüente. O único exame alterado correspondeu à paciente portadora de hipotireoidismo congênito, cuja alteração ecocardiográfica foi mantida, mas não considerada como seqüela de fase aguda (Tabela 3).






Os resultados de PCR realizados 36 meses após a fase aguda (indivíduos tratados) demonstraram 1 indivíduo com exame positivo, caracterizado como T. cruzi I. Os exames sorológicos permaneceram positivos com títulos baixos e variáveis entre 40 e 160 (Figura 4).






Discussão
Os autores descrevem um surto de doença de Chagas aguda, autóctone da Amazônia, ocorrida no Pará. Juntamente com o estado do Amapá, o Pará tem registrado estas ocorrências inusitadas de pequenos surtos de provável transmissão oral com maior ênfase desde 1996.10
Do total, apenas 2 doentes demonstraram parasitas ao exame parasitológico direto, sendo este um fenômeno pouco compatível com a fase aguda da doença. Entretanto, os autores justificam este resultado pelo retardo diagnóstico (média de 28 dias de doença) e conseqüente diminuição da parasitemia periférica, a qual foi evidenciada no exame parasitológico indireto (100% dos xenodiagnósticos positivos). Os dois doentes com exames parasitológicos direto e indireto negativos apresentavam vínculo epidemiológico (relação espaço-temporal), evidências sorológicas e clínica compatível com fase aguda e por isso foram considerados casos.
Conforme registros de área endêmica, a gravidade de casos de doença de Chagas aguda está freqüentemente relacionada à menigoencefalite e miocardite aguda.7,11 A letalidade em casos de acometimento cardíaco em área endêmica estava invariavelmente relacionada a crianças pequenas, sendo raro o óbito entre adolescentes e adultos.12 O próprio Carlos Chagas descreveu 29 casos agudos, todos em crianças, dos quais 11 (37.9%) foram fatais.7
Na Amazônia, acometimentos cardíacos graves em fase aguda foram relatados anteriormente em um surto envolvendo três membros da mesma família, entre os quais dois deles evoluíram para o óbito por miopericardite aguda grave e tamponamento cardíaco. Entretanto, neste episódio os autores sugerem que a evolução fatal tenha ocorrido em virtude do uso de droga miocardiotóxica, o glucantime, administrado aos doentes devido equívoco diagnóstico feito por exame sorológico falso positivo para leishmaniose.13
A peculiaridade clínica relevante no surto de Igarapé Miri foi a manifestação do tipo gastrintestinal predominante sobre um acometimento geral (síndrome febril) ou cardíaco, relacionado a outras descrições da Amazônia.13-15 A icterícia manifestada em 3 doentes induziu a dois diagnósticos de suspeição (diferenciais) inusitados: hepatite e colecistite aguda. Contudo, a icterícia foi justificada nos três casos, devido à presença de complicações bacterianas associadas. Assim, a hipótese de ingestão de alimento contaminado esteve relacionado a algumas evidências clínicas na presente descrição.
Registros anteriores relataram a simultaneidade de aparecimento de sintomas em pessoas relacionadas espaço-temporalmente, sustentando a hipótese de transmissão oral relacionada a alimento manipulado de forma pouco higiênica e ingerido in natura, em regiões que se sobrepõem à ocorrência de ciclos enzoóticos bem estabelecidos de T. cruzi. Todos os indivíduos envolvidos no surto, assim como os assintomáticos utilizam o provável alimento acidentalmente envolvido, cerca de 3 vezes diárias, tornando difícil a correlação entre adoecimento e utilização do mesmo, além da impossibilidade de precisão, ou mesmo de estimativa do momento da provável contaminação. Já foram demonstrados anteriormente fortes vínculos epidemiológicos entre a ocorrência de surtos familiares de DCA e utilização do açaí manipulado inadequadamente em trabalhos anteriores de nosso grupo.16,17
Os dois indivíduos com evolução fatal manifestaram quadro abdominal agudo. Um deles, o caso de óbito por hemorragia digestiva, encontra similaridade com surto de doença de Chagas de transmissão oral, ocorrido em Santa Catarina em fevereiro de 2004.18 Nesse episódio foram descritos 24 casos agudos, entre os quais dois apresentaram hemorragia digestiva seguida de óbito, à semelhança dos ocorridos na Amazônia. A falha na verificação do óbito não permitiu conclusões acerca da possibilidade de chagomas gástricos, contudo um único exame histopatológico realizado na lesão ulcerada do corpo gástrico, não demonstrou parasitas.
A infecção com cepas de T. cruzi de origem silvestre (cepa peruana) parece ter infectividade e patogenicidade elevadas, independente da via de infecção, quando comparadas a cepas de origem domiciliar em modelos de experimentação animal.19 Também é possível que a patogenicidade do T. cruzi na infecção por via oral possa ser mais eficaz do que pela via vetorial, na dependência da quantidade do inoculo. Além disso, o indivíduo infectado pode estar ingerindo todas as formas parasitárias e não apenas as formas reconhecidas como de maior poder infectante.
Considerando que desconhecemos o mecanismo da infecção por via oral em humanos, uma questão importante a ser respondida é: se existirão outras formas parasitárias, além das formas tripomastigotas metacíclicas, capazes de penetrar em mucosas digestivas e causar infecção? Trabalho recente de infecção experimental por T. cruzi demonstrou que as formas tripomastigotas metacíclicas provenientes das fezes de triatomíneos são altamente eficientes em infectar camundongos por via gastrointestinal e mucosas, ao contrário das formas tripomastigotas sanguíneas. Estas só foram capazes de causar infecção por essa via quando havia soluções de continuidade no trato digestivo dos camundongos.20 Assim, pode-se sugerir que, em humanos, lesões de mucosa em quaisquer níveis do trato esôfago-gástrico (lesões dentárias, úlceras gastroduodenais, ou outras) possam potencializar o efeito patogênico parasitário, como conseqüência de uma penetração (infectividade) quantitativamente maior. Ao contrário, mucosas digestivas íntegras funcionam como protetores, justificando a ausência de doença em indivíduos que possam eventualmente ter compartilhado o mesmo alimento supostamente contaminado.
O surto ora descrito sugere alguns fatores prognósticos importantes em doença de Chagas aguda que deverão ser considerados imediatamente ao diagnóstico e início de tratamento: idade e a concomitância de infecções. Estes fatores deverão ser mais bem entendidos a partir da vigilância reforçada de casos potencialmente graves.
Os autores relatam mais uma ocorrência simultânea de casos de doença de Chagas aguda de provável transmissão por via oral, manifestações gastrintestinais importantes e gravidade da apresentação clínica de três casos incluindo dois óbitos. As peculiaridades clínicas relativas a este surto são, principalmente, as manifestações gastrintestinais sobressaindo sobre o acometimento cardíaco.
A evolução após tratamento demonstrou boa resposta clínica, incipientemente avaliada. Entretanto, a presença de IgG mesmo com títulos baixos, pode significar persistência parasitária, considerando que um deles demonstrou PCR positiva quatro anos após a terapêutica específica. Objetivamente, os autores sugerem que em indivíduos tratados em fase aguda, protocolos de re-tratamento sejam criados, em período não maior que 18 meses após o primeiro tratamento, através de nova série de benzonidazol, indicado para aqueles que mantenham exames sorológicos positivos por 2 técnicas sorológicas diferentes, independentemente dos níveis (quantitativo) de anticorpos IgG ou do registro de manifestações clínicas.


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